Translate

quinta-feira, 9 de abril de 2015

REFLEXÕES SOBRE A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL

Nos últimos tempos, têm crescido assustadoramente o número de jovens infratores. O crescente aumento da criminalidade, aliado ao fato de que, normalmente, a legislação aplicada aos jovens é mais branda do que aquela destinada aos adultos, tem motivado discussões no sentido de se apontar o início da chamada imputabilidade penal, ou seja, o marco, a partir do qual, o sujeito já seria considerado como imputável pelo direito penal, passando a responder pelos seus atos como uma pessoa culpável, vale dizer, cujo comportamento é passível de censura, o que faria com que pudesse ser a ele aplicada uma pena privativa de liberdade, ao invés de medidas consideradas como sócio-educativas, mesmo que temporariamente segregatórias, atualmente destinadas aos adolescentes infratores.
No Brasil, a discussão vem ganhando CORPO, uma vez que o crime organizado, principalmente as facções ligadas ao tráfico de drogas, se utiliza de menores devido à sua particular condição, o que lhes facilita a saída do sistema punitivo, caso seu ato venha a ser descoberto.
Também não é incomum que, além do tráfico de drogas, outros tipos de infrações penais sejam praticadas por adolescentes, como, por exemplo, o crime de roubo. É importante ressaltar, nesta oportunidade que, se, por exemplo, duas pessoas praticam o crime de roubo, e ambas conseguem ser descobertas, costuma ser uma “regra interna” da criminalidade atribuir o fato somente ao agente inimputável, tendo em vista que a legislação, como regra, o beneficiará, fazendo com que, se for o caso, permaneça somente por um tempo curto em regime de internação (no máximo de três anos, no Brasil), ao contrário do que ocorreria com o agente imputável, cujas penas são severas para esse tipo de comportamento.
A discussão sobre o início da imputabilidade penal acontece, basicamente, em todos os países do mundo. Não há um consenso quanto isso. Entende-se que o menor deverá ter um tratamento diverso da pessoa imputável, uma vez que aquele ainda se encontra em processo de formação de sua personalidade, isto é, não está completamente desenvolvido física e psicologicamente, razão pela qual não poderia responder pelos seus atos como se fosse uma pessoa completamente capaz.
Por outro lado, verificamos que os menores têm se desenvolvido rapidamente. Hoje, adolescentes com 14 anos, ou até menos, já têm pleno conhecimento de tudo o que acontece na sociedade. Grande parte já teve, inclusive, experiências na área sexual. As drogas passaram a ser utilizadas por todos, principalmente as chamadas sintéticas, como é o caso do ecstasy, que são oferecidas em festas, em plena luz do dia.
Esse caldo faz com que sempre seja discutido o início da imputabilidade penal, marco que geraria consequências graves para aquele que, a partir desse momento, viesse a praticar alguma infração penal.
A regra 4, das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça, Infância e da Juventude (Regras de Beijing), assevera que nos sistemas jurídicos que reconheçam o conceito de responsabilidade penal para jovens, seu começo não deverá fixar-se NUMA idade demasiado precoce, levando-se em conta as circunstâncias que acompanham a maturidade emocional, mental e intelectual.
Na Espanha, tal como ocorre no Brasil, a imputabilidade penal tem início aos 18 anos completos, idade a partir da qual passa a existir a possibilidade de serem responsabilizados criminalmente, ou seja, de acordo com as lei penais.
No entanto, embora seja essa a orientação, merece registro a diversidade de pensamento quanto ao tema, nos cinco continentes. Para que se tenha uma ideia, apontaremos somente alguns países em cada continente, colocando ao lado o início da imputabilidade penal: a) Europa: Escócia (8 anos); Ucrânia (10 anos); Po- lônia e Inglaterra (10 anos); Alemanha, Itália e Rússia (14 anos); Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia(15anos); b) Ásia: Bangladesh, Índia, Myanmar, Paquistão,Tailândia (7 anos); Indonésia (8 anos); Filipinas (9 anos); Nepal (10 anos); Coreia do Sul (12 anos); Uzbequistão (13 anos); China e Vietnã (14 anos); c) África: África do Sul, Nigéria, Sudão,Tanzãnia (7 anos); Quênia (8 anos); Etiópia (9 anos); Marrocos e Uganda (12 anos); Argélia (13 anos); Egito (15 anos); d) América do Sul: Argentina e Chile (16 anos); Peru e Colômbia (18 anos); e) América do Norte: Estados Unidos da América do Norte (varia entre 6 a 18 anos de idade, dependendo da legislação estadual); México (gira em torno de 11 ou 12 anos para a maioria dos Estados).
O art. 1º da Convenção sobre os Direitos da Criança considera como criança todo ser humano menor de 18 anos, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes. O mencionado artigo, embora tenha indicado o marco de 18 anos, ressalvou a possibilidade dos Estados legislarem de forma diferente, atribuindo um limite inferior.
Muito embora a Convenção tenha determinado o marco de 18 anos para o início da imputabilidade penal, não indicou a partir de quando se teria início a proteção da criança, ou seja, se a partir da concepção, da nidação ou mesmo do nascimento.
Acreditamos que a criança deverá ser protegida desde o momento de sua concepção, ou seja, desde a fecundação do ovo, devendo o Estado tomar todas as providências necessárias ao seu crescimento. No momento, não enfrentaremos a questão da possibilidade do aborto, pois que fugiria ao tema proposto.
Os Estados, de acordo com o item 3 do art. 40 da Convenção sobre os Direitos da Criança deverão estabelecer uma idade mínima antes da qual se presumirá que a criança não tem capacidade para infringir as leis penais. Seria inimaginável atribuir, por exemplo, um crime de lesão corporal a uma criança com 2 (dois) anos de idade, por ter arremessado um brinquedo em direção à cabeça de sua babá, causando-lhe uma pequena lesão, devido ao local atingido pelo golpe.
Por mais que o menor deva ser submetido a uma Justiça Especial, que o julgará e aplicará uma medida de acordo com suas peculiares características, há situações em que esse julgamento sequer poderá ser cogitado, sob pena de se cair em situações ridículas. Por isso, a orientação constante do item 3, do art. 40 da mencionada Convenção.
Merecem registro as considerações existentes no Manual de Direitos Humanos para Juízes, membros do Ministério Público e Advogados, quando, no Capítulo correspondente aos Direitos da Criança na Administração da Justiça, dizem que “a idade mínima e as consequências da responsabilização penal variam muito segundo as épocas e as culturas. A atitude moderna consiste em perguntar se uma criança consegue estar à altura das componentes morais e psicológicas da responsabilidade penal; isto é, se uma criança, dada a sua capacidade de discernimento e de compreensão, pode ser considerada responsável por um comportamento essencialmente antissocial. Se a idade da responsabilização penal for fixada num nível demasiado baixo ou se não existir qualquer limite mínimo, a noção de responsabilidade deixará de ter qualquer sentido. Em geral, existe uma estreita ligação entre a noção de responsabilização por um comportamento delituoso ou criminoso e outros direitos e responsabilidades sociais (tais como o direito de contrair matrimônio ou a maioridade civil). Deverão, pois, ser feitos esforços para se encontrar um limite de idade razoável, que seja internacionalmente aplicável”.
Mesmo com todas essas recomendações, ainda é grande, como vimos, a discrepância entre os países. Não há um consenso quanto à idade limite para o conceito de criança (ou adolescente), e o início da imputabilidade penal, com todas as consequências que lhe são inerentes.
Toda essa discussão quanto ao limite de idade para o reconhecimento da menoridade penal tem uma série de repercussões práticas. Uma delas, e a que mais nos interessa, diz respeito aos objetivos da Justiça especializada, dirigida a esses menores.
O art. 40, em seu conjunto de parágrafos e incisos, da Convenção sobre os Direitos da Criança, cuida especificamente sobre essa modalidade de Justiça, sobre a forma como deverá ser levado a efeito o julgamento, a finalidade da medida a ser aplicada, enfim, serve de orientação aos legisladores dos Estados para que produzam leis nos moldes determinados pela Convenção, visando sempre à reabilitação e reintegração social da criança.
No entanto, muito embora existam orientações internacionais, elas não são cumpridas, principalmente nos países da América Latina, onde a internação dos jovens infratores ainda é uma constante.
Em alguns casos, não poderia ser diferente, pois que muitos menores atuam, como já dissemos, em concurso com pessoas imputáveis, praticando toda sorte de infrações penais. A violência praticada por menores vem crescendo a cada ano, principalmente nos países onde a desigualdade social é grande. O tráfico de drogas os arregimenta em suas fileiras, e os transforma em delinquentes profissionais,muitas vezes mais perigosos e sedentos de sangue do que seus companheiros, que já atingiram a maioridade penal.
Essa onda crescente de violência praticada por menores faz com que, a toda hora, o sistema de internação seja repensado. Tal como ocorre com as penitenciárias, os menores são jogados, como é o caso do Brasil, em instituições que não os recuperam, que os tratam com crueldade, de forma desumana e degradante.
São poucos os países na América Latina que possuem planos de recuperação dos adolescentes infratores. No Brasil, infelizmente, esses adolescentes são tratados com crueldade, sendo constantemente espancados e torturados pelos funcionários encarregados da sua vigilância e, muitas vezes, violentados, sendo obrigados a com eles manter relações sexuais.
A internação do adolescente deveria ser uma medida extrema do Estado, pois, conforme determina o art. 37, b, da Convenção sobre os Direitos da Criança a detenção, a reclusão ou a prisão de uma criança, deverá ser efetuada em conformidade com a lei e apenas como último recurso, e durante o mais breve período de tempo que for apropriado.
Assim, portanto, são três os requisitos impostos a essa especial privação da liberdade:
A legalidade do ato, não se podendo tolerar privações arbitrárias;
Somente será imposta se nenhuma outra medida for conveniente ao caso concreto, sendo aplicada sempre como último recurso;
O tempo de cumprimento deverá ser o menor possível. O Estatuto da Criança e do Adolescente acolheu tal orientação, conforme se verifica pela redação do art. 121, que diz, verbis:
Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
No entanto, os movimentos populares, estimulados pela mídia, forçam os legisladores a tratar os adolescentes cada vez de forma mais severa. O que era para ser a exceção (a privação da liberdade), acabou tornando-se a regra. Por essa razão, as instituições encarregadas de abrigar os menores passaram a ter os mesmos problemas existentes nas penitenciárias, principalmente no que diz respeito à superlotação.
Na verdade, se fizermos uma comparação das acomodações, bem como com os tratamentos oferecidos a esses menores, verificaremos que em nada ou em muito pouco diferem daqueles existentes nos centros penitenciários. Os mesmos tratamentos cruéis, desumanos e degradantes são aplicados aos menores.
As arbitrariedades são constantes; a humilhação, uma regra existente nessas instituições. Os adolescentes passam pelas mãos de funcionários despreparados, para não chamá-los, em muitos casos, de verdadeiros psicopatas, que descarregam toda sua raiva, toda sua ira nos CORPOS dos menores, que estão ali para se recuperar e retornar ao convívio em sociedade.
Contudo, esses programas jamais terão êxito da forma como são aplicados. Isso não quer dizer que em todos os lugares do mundo a situação seja essa. Existem muitos países avançados na recuperação de menores, principalmente na Europa. Essa, infelizmente, é uma realidade que retrata os países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como ocorre em grande parte na América do Sul, aqui incluído o Brasil.
A preocupação com o lugar de internação e o tratamento destinado a esses menores é tão grande que foram criadas as Regras Mínimas das Nações Unidas para a proteção dos jovens privados de liberdade. No capítulo IV, todos os detalhes foram pensados, desde a chegada ao centro de detenção de jovens, até a sua efetiva saída.
Nenhum jovem poderá ser admitido num centro de detenção sem uma ordem de internação válida, expedida por uma autoridade judicial, devendo, obrigatoriamente, ser registrado o seu ingresso naquele estabelecimento, onde serão consignados todos os seus dados. Os menores deverão ser entrevistados, preparando-se, o mais rápido possível, um relatório psicológico e social, que será apresentado futuramente ao diretor do estabelecimento para que decida sobre o lugar adequado a ser instalado.
O ambiente físico também é de extrema importância, pois que deverão atender aos requisitos mínimos que garantam a dignidade daquele que ali se encontrará privado de sua liberdade. A primeira parte da regra 32 determina que o desenho dos centros de detenção para jovens e o ambiente físico deverão corresponder a sua finalidade, ou seja, a reabilitação dos jovens internados, em tratamento, levando devidamente em conta a sua necessidade de intimidade, de estímulos sensoriais, de possibilidades de associação com seus companheiros e de participação em atividades esportivas, EXERCÍCIOS físicos e atividades de entretenimento.
A educação dos menores é um dos pontos principais a serem observados pelos centros de detenção, devendo todo jovem receber ensino adaptado as suas idades e capacidades, destinando a prepará-los para sua reintegração ao convívio em sociedade.
Além do estudo, os centros de detenção também devem preocupar-se com a formação profissional do menor, preparando-o para ser absorvido pelo mercado de trabalho.
Enfim, tal como deveria ocorrer com os maiores, imputáveis, aos jovens infratores deveriam ser oferecidas todas as condições necessárias à sua reintegração, tornando-os pessoas úteis. No entanto, embora tudo tenha sido determinado a contento pelas organizações mundiais, na prática, a realidade é outra. Os adolescentes são jogados em calabouços, afastados de suas famílias e amigos, maltratados por aqueles que deveriam cuidar da sua segurança, espancados por outros menores, autores de atos infracionais graves que, devido à falta de classificação adequada, encontram-se internados com outros que praticaram fatos de menor gravidade; não lhes é oferecida a necessária educação escolar, não são preparados para o mercado de trabalho. Em resumo, não lhes concedem o mínimo de dignidade.
Por isso, não se pode exigir que saiam do sistema melhores do que entraram, mas, pelo contrário, a tendência natural é uma mera transferência de endereço, ou seja, ao saírem de uma instituição para menores, voltarão para a sociedade e, em pouco tempo, atingindo a maioridade, após praticarem nova infração penal, serão transferidos para o sistema prisional, o que não lhes fará muito diferença, pois que já se estão acostumados com tudo aquilo que nele presenciarão.
Centros de detenção de menores ou Centros penitenciários para maiores é uma questão somente de denominação, pois que ambas as instituições se equivalem nos vícios e nas mazelas.
Não podemos nos esquecer que essa grande maioria de jovens que faz parte do sistema de punitivo que lhes é próprio, também sofre com o processo de seletividade. Isso que dizer que, também nessa esfera punitiva, existe uma seleção pré-determinada de quem, efetivamente, cairá nas “garras” da Justiça de Menores, ou seja, existe também aqui um processo natural de seleção, pelo qual somente os jovens pertencentes às camadas sociais mais baixas é que sofrerão os rigores da legislação que lhes é destinada.
Tal como acontece com a aplicação da lei penal para os imputáveis, existe um cruel processo de seleção dos jovens miseráveis, pertencentes, muitas vezes, a famílias desestruturadas socialmente. O abandono dos pais, o alcoolismo, o vício em substâncias entorpecentes, a miséria, enfim, esse conjunto de fatores cria uma fórmula quase que infalível: a delinquência.
F. Cano, embora tenha feito um diagnóstico das infrações praticadas por menores na cidade de Barcelona, Espanha, suas conclusões podem ser entendidas genericamente, pois, como observou:
“a distribuição local dos menores delinquentes geralmente coincide com os bairros de maior miséria. O foco mais intenso da criminalidade juvenil ocorre nas ruas, onde reina o vicio em suas formas mais grosseiras: nas habitadas por ínfimas prostitutas, por profissionais do delito, vadios e todo gênero de meliantes, pessoas cujas vidas transcorrem margeando ou caindo dentro do Código Penal, e mescladas com essa variedade de ociosidade, convivem com um grande numero de famílias pobres”.
Por outro lado, não é incomum que jovens de classe sociais mais abastadas também pratiquem crimes, principalmente os ligados ao uso de drogas. No entanto, como acontece normalmente, a grande maioria fica livre da Justiça. É a dureza da realidade seletiva, ofensiva do princípio da isonomia.
No Brasil, para que possa ocorrer a redução da maioridade penal, haverá necessidade de emenda à Constituição Federal, haja vista o disposto no seu art. 228, que diz serem penalmente inimputáveis os menores de 18 anos.
No entanto, particularmente, com toda vênia, entendemos como hipócrita esse discurso, típico de um movimento de lei e ordem, que vem dominando nosso país. Ao invés de adotar políticas sociais coerentes, deixamos de lado o Estado Social, e passamos a adotar um Estado Penal, mesmo sabendo da carga simbólica deste último.
Para que pudéssemos discutir corretamente a redução da maioridade penal, teríamos que proporcionar, a todos os adolescentes, as mesmas condições sociais. Se, ainda assim, mesmo com o Estado cumprindo com suas funções sociais, os atos infracionais não diminuíssem, talvez fosse a hora de se repensar o limite da maioridade penal.
Como dissemos anteriormente, grande parte dos atos infracionais ou é relacionada às drogas (consumo ou tráfico), ou a crimes contra o patrimônio. Se um Estado cumprisse com suas funções sociais, proporcionando uma vida digna àqueles que pertencem às classes sociais mais baixas, com toda certeza, diminuiríamos consideravelmente os crimes contra o patrimônio praticados por adolescentes infratores.
A desigualdade social, na verdade, é a mola propulsora desse tipo de criminalidade. No entanto, é mais conveniente ao Estado punir, seletivamente, o miserável (porque será ele que continuará a freqüentar nossos cárceres), do que implementar políticas públicas dignas de um Estado Democrático de Direito.
Enfim, o discurso da redução da maioridade penal, além de não resolver o problema do aumento da criminalidade, somente abarrotará, ainda mais, nosso sistema prisional. A título de reflexão: Quem é realmente o vilão da nossa sociedade: a) o corrupto, que subtrai ou desvia milhões de reais, que seriam destinados à construção de casas populares, estradas, escolas, hospitais, aquisição de merenda escolar, medicamentos etc.; ou b) os adolescentes infratores que, premidos por uma desigualdade social extrema, subtraem, com violência, um celular em praça pública? Nossa consciência que responda…

FONTE: http://www.rogeriogreco.com.br/?p=2910 Acessado em 09/04/2015
PRINCIPIOLOGIA PENAL E GARANTIA CONSTITUCIONAL À INTIMDADE

1. Principiologia do direito penal
            Embora não seja unânime essa posição, podemos considerar o século XVIII como um marco fundamental para o Direito Penal. Antes dele, o Direito Penal viveu um de seus piores momentos, um período considerado como de escuridão. Com a chegada do século XVIII, com a prevalência da razão, surgiu um novo Século, considerado, agora, como Século da Luzes.
            Muitas foram às vozes que, durante o período iluminista, se levantaram contra a crueldade do Direito Penal, podendo-se destacar as de Montesquieu, Rousseau, Kant, Hegel, Beccaria, enfim, foram vários os pensadores que, na Europa, participaram de um movimento que tinha por finalidade proporcionar mudanças radicais nesse ramo do ordenamento jurídico.
            Inúmeras teorias e princípios, até hoje aplicados, surgiram durante esse período. A Revolução Francesa, de 1789, foi um dos marcos históricos mais importantes para a nossa disciplina. Se compararmos, por exemplo, a Revolução Americana com a Revolução Francesa, que ocorreu poucos anos depois, podemos perceber a diferença de visão. A própria Constituição Americana, de 1787, começa o seu preâmbulo com a expressão we the people, ou seja, nós, o povo americano… Ao contrário, a revolução francesa culminou NUMA declaração dos direitos do homem e do cidadão. Assim, podemos afirmar, mesmo que um pouco exageradamente, que a revolução americana foi feita para o povo americano, enquanto que a revolução francesa foi feita para todos os homens.
            Por essa razão, a declaração dos direitos do homem e do cidadão está repleta de princípios de natureza universal, que devem ser aplicados a todo ser humano, independentemente de sua origem, raça, sexo, cor, nacionalidade etc.
            Muitos foram os princípios de natureza penal que tiveram origem no período iluminista, princípios estes que servem de alicerce, ou seja, são considerados como fundamento de toda a construção legislativa.
2. Conceito de princípios
  A palavra “princípio”, no singular, indica o início, a origem, o começo, a causa primária.
Com precisão, aduz Ruy Samuel Espíndola:
Pode-se concluir que a idéia de princípio ou sua conceituação, seja lá qual for o campo do saber que se tenha em mente, designa a estruturação de um sistema de idéias, pensamentos ou normas por uma idéia mestra, por um pensamento-chave, por uma baliza normativa, donde todas as demais idéias, pensamentos ou normas derivam, se reconduzem e/ou se subordinam.[1]
Nessa conceituação podemos visualizar e apontar os princípios como orientadores de todo o sistema normativo, sejam eles positivados ou não. Dissemos positivados ou não porque os princípios podem estar previstos expressamente em textos normativos, a exemplo do que ocorre com o princípio da legalidade[2], ou outros que, embora não positivados, são de observância obrigatória, razão pela qual são denominados princípios gerais do Direito.[3]
Merecem ser transcritas as lições de Ivo Dantas quando, buscando conceituar os princípios, diz:
Para nós, PRINCÍPIOS são categoria lógica e, tanto quanto possível, universal, muito embora não possamos esquecer que, antes de tudo, quando incorporados a um sistema jurídico-constitucional-positivo, refletem a própria estrutura ideológica do Estado, como tal, representativa dos valores consagrados por uma determinada sociedade.[4]
Fábio Corrêa Souza de Oliveira, com argúcia, observa, ainda:
A par daqueles considerados válidos para toda forma de conhecimento, cada ramo do saber pode instituir princípios particulares. Temos os princípios da Física, da Psicologia, da Economia, da Teologia, da Sociologia, da Química, da Filosofia, do Serviço Social, do Direito etc. A declaração dos princípios não é feita, em grande parte dos casos, num clima de pacificidade. Inúmeras dificuldades e controvérsias existem mesmo nas Ciências Exatas ou Biológicas. A evolução do entendimento e da tecnologia se encarrega de derrubar princípios acreditados como absolutos e imperecíveis. Nas Ciências Humanas e Sociais, os desacordos e os antagonismos são freqüentes. É de ampla aceitação a tese de que os princípios se revestem de algum caráter de relatividade, inclusive os estimados como universais. As disputas não se limitam apenas sobre quais princípios são determinados, mas ainda sobre a maneira de compreendê-los e aplicá-los.[5]

2. 1. O caráter normativo dos princípios
Sejam os princípios expressos ou implícitos, positivados ou não, entende-se, contemporaneamente, o seu caráter normativo. São concebidos como normas com alto nível de generalidade e informadores de todo o ordenamento jurídico.
Ricardo Guastini, com precisão, aponta seis distintas definições de princípios que se encontram estreitamente ligadas às disposições normativas, quando assevera:
Em primeiro lugar, o vocábulo ‘princípio’[...] se refere a normas (ou a disposições legislativas que exprimem normas) providas de um alto grau de generalidade.
Em segundo lugar [...], os juristas usam o vocábulo ‘princípio’ para referir-se a normas (ou a disposições que exprimem normas) providas de um alto grau de indeterminação e que por isso requerem concretização por via interpretativa, sem a qual não seriam suscetíveis de aplicação aos casos concretos.
Em terceiro lugar [...], os juristas empregam a palavra ‘princípio’ para referir-se a normas (ou disposições normativas) de caráter ‘programático’.
Em quarto lugar [...], o uso que os juristas às vezes fazem do termo ‘princípio’é para referir-se a normas (ou a dispositivos que exprimem normas) cuja posição hierárquica das fontes de Direito é muito elevada.
Em quinto lugar [...], os juristas usam o vocábulo ‘princípio’para designar normas (ou disposições normativas) que desempenham uma função ‘importante’e ‘fundamental’ no sistema jurídico ou político unitariamente considerado, ou num outro subsistema do sistema jurídico conjunto (o Direito Civil, o Direito do Trabalho, o Direito das Obrigações).
Em sexto lugar, finalmente [...], os juristas se valem da expressão ‘princípio’para designar normas (ou disposições que exprimem normas) dirigidas aos órgãos de aplicação, cuja específica função é fazer a escolha dos dispositivos ou das normas aplicáveis nos diversos casos.[6]
Ana Paula de Barcellos, a seu turno, enumera os sete critérios mais utilizados pela doutrina para que se leve a efeito a distinção entre os princípios e as regras, a saber:
(a) O conteúdo. Os princípios estão mais próximos da idéia de valor e de direito. Eles formam uma exigência da justiça, da equidade ou da moralidade, ao passo que as regras têm um conteúdo diversificado e não necessariamente moral. Ainda no que diz respeito ao conteúdo, Rodolfo L. Vigo chega a identificar determinados princípios, que denomina de ‘fortes’, com os direitos humanos.
(b) Origem e validade. A validade dos princípios decorre de seu próprio conteúdo, ao passo que as regras derivam de outras regras ou dos princípios. Assim, é possível identificar o momento e a forma como determinada regra tornou-se norma jurídica, perquirição essa que será inútil no que diz respeito aos princípios.
(c) Compromisso histórico. Os princípios são para muitos (ainda que não todos), em maior ou menor medida, universais, absolutos, objetivos e permanentes, ao passo que as regras caracterizam-se de forma bastante evidente pela contingência e relatividade de seus conteúdos, dependendo do tempo e lugar.
(d) Função no ordenamento. Os princípios têm uma função explicadora e justificadora em relação às regras. Ao modo dos axiomas e leis científicas, os princípios sintetizam uma grande quantidade de informação de um setor ou de todo o ordenamento jurídico, conferindo-lhe unidade e ordenação.
(e) Estrutura lingüística. Os princípios são mais abstratos que as regras, em geral não descrevem as condições necessárias para sua aplicação e, por isso mesmo, aplicam-se a um número indeterminado de situações. Em relação à regras, diferentemente, é possível identificar, com maior ou menor trabalho, suas hipóteses de aplicação.
(f) Esforço interpretativo exigido. Os princípios exigem uma atividade argumentativa muito mais intensa, não apenas para precisar seu sentido, como também para inferir a solução que ele propõe para o caso, ao passo que as regras demandam apenas uma aplicabilidade, na expressão de Josef Esse, ‘burocrática e técnica’.
(g) Aplicação. As regras têm estrutura biunívoca, aplicando-se de acordo com o modelo do ‘tudo ou nada’, popularizado por Ronaldo Dworkin. Isto é, dado seu substrato fático típico, as regras só admitem duas espécies de situação: ou são válidas e se aplicam ou não se aplicam por inválidas. Não são admitidas gradações. Como registra Robert Alexy, ao contrário das regras, os princípios determinam que algo seja realizado na maior medida possível, admitindo uma aplicação mais ou menos ampla de acordo com as possibilidades físicas e jurídicas existentes.[7]
Marcello Ciotola, apontando a polêmica confusão que se faz entre norma e princípio ou, ainda, entre regra e princípio, preleciona, citando Robert Alexy:
Robert Alexy observa que, embora a distinção entre regras e princípios não seja nova, impera a respeito confusão e polêmica. Além do mais, a contraposição que freqüentemente se faz é entre norma e princípio, e não entre regra e princípio. Questionando esta postura, afirma que regras e princípios são espécies do gênero norma jurídica:
‘Tanto las reglas como los principios son normas porque ambos dicen lo que debe ser. Ambos puden ser formulados con la ayuda de las expresiones deónticas básicas del mandato, la permisión y la prohibición. Los princípios, al igual que las reglas, son razones para juicios concretos de deber ser, aun cuando sean razones de un tipo muy diferente. La distinción entre reglas y principios es pues una distinción entre dos tipos de normas’.[8]
Merece destaque, ainda, a evolução relativa às fases pelas quais passou a juridicidade dos princípios. Inicialmente, os princípios possuíam caráter jusnaturalista, seguindo-se a ela a fase positivista, para, então, modernamente, atribuir-se-lhes uma visão pós-positivista.
Disserta Paulo Bonavides que, na fase jusnaturalista,
os princípios habitam ainda a esfera por inteiro abstrata e sua normatividade, basicamente nula e duvidosa, contrasta com o reconhecimento de sua dimensão ético-valorativa de idéia que inspira os postulados de justiça.[9]
Na segunda fase, considerada positivista, os princípios deveriam ser extraídos do sistema de normas posto em determinado ordenamento jurídico, servindo-lhe como fonte normativa subsidiária ou, na expressão de Gordilho Cañas, citado por Paulo Bonavides, como “válvula de segurança”, que “garante o reinado absoluto da lei”.[10]
Na fase pós-positivista, as Constituições, seguindo as lições de Paulo Bonavides, “acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais”.[11]
Os princípios, portanto, passam, nesta última fase, a exercer a primazia sobre todo o ordenamento jurídico, limitando, por meio dos valores por eles selecionados, a atividade legislativa, somente permitindo, no caso específico do Direito Penal, por exemplo, a criação normativa que não lhes seja ofensiva.
Em decorrência desse raciocínio, entendemos que os princípios, dado o seu caráter de norma superior às demais existentes no ordenamento jurídico, servem de garantia a todos os cidadãos, em um Estado Constitucional e Democrático de Direito, contra as tentativas do próprio Estado em se arvorar em “senhor onipotente”. Os princípios são, portanto, o escudo protetor de todo cidadão contra os ataques do Estado. Todas as normas lhe devem obediência, sob pena de serem declaradas inválidas. A título de exemplo, imagine-se a hipótese tão ventilada nos meios de comunicação de massa a respeito da implementação das penas de morte ou de caráter perpétuo para determinadas infrações penais. Mesmo se não houvesse princípio específico para o tema, o princípio da dignidade da pessoa humana, também previsto em sede constitucional, seria suficiente para impedir a modificação do ordenamento-jurídico penal. Se o legislador insistisse em desobedecer-lhe, outra alternativa não caberia ao Poder Judiciário, encarregado do controle das leis, senão de afastar a aplicação da norma contrária ao mencionado princípio.
Assim, concluindo, contemporaneamente, os princípios, em uma escala hierárquica, ocupam o lugar de maior destaque e importância, refletindo, obrigatoriamente, sobre todo o ordenamento jurídico.
3. O princípio da dignidade da pessoa humana
            Apontar a origem da dignidade da pessoa humana, como um valor a ser respeitado por todos, não é tarefa das mais fáceis. No entanto, analisando a história, podemos dizer que uma de suas raízes mais fortes encontra-se no cristianismo. A idéia, por exemplo, de igualdade e respeito entre os homens, fossem eles livres ou escravos, demonstra que o verdadeiro cristianismo, aquele personificado na pessoa de Jesus, pode ser um dos alicerces desse complexo edifício da dignidade da pessoa humana.
            Tivemos o cuidado de mencionar o cristianismo verdadeiro pelo simples fato de que os próprios homens, ao longo dos anos, foram responsáveis pela sua modificação, a fim de satisfazer seus desejos egoístas e cruéis, a exemplo do que ocorreu durante o período da chamada “Santa Inquisição”, onde foram praticadas incontáveis atrocidades “em nome de Deus”. No entanto, a base do cristianismo, voltado para a pessoa de Jesus, pode ser o nosso primeiro marco de estudo para o conceito de dignidade da pessoa humana.
            Dando um salto nos séculos, chegaremos ao período iluminista, ao século das luzes, onde a razão acendeu uma fogueira, colocando luz à escuridão existente até àquele momento. Os séculos XVII e XVIII foram de fundamental importância não somente ao efetivo reconhecimento, como para a consolidação da dignidade da pessoa humana como um valor a ser respeitado por todos.
            No entanto, mesmo reconhecendo a sua existência, conceituar dignidade da pessoa humana continua a ser um enorme desafio. Isto porque tal conceito encontra-se no rol daqueles considerados como vagos e imprecisos. É um conceito, na verdade, que, desde a sua origem, encontra-se em um processo de construção. Não podemos, de modo algum, edificar um muro com a finalidade de dar contornos precisos a ele, justamente por ser um conceito aberto.
            Em muitas situações, somente a análise do caso concreto é que nos permitirá saber se houve ou não efetiva violação da dignidade da pessoa humana. Não se pode desprezar, ainda, para efeitos de reconhecimento desse conceito, a diversidade histórico-cultural que reina entre os povos. Assim, aquilo que NUMA determinada cultura pode ser concebido como uma gritante violação dos direitos à dignidade do ser humano, em outra pode ser reconhecido como uma conduta honrosa. Veja-se o exemplo do que ocorre com o costume praticado em certas regiões na África, onde ocorre a chamada excisão, que consiste na mutilação do clitóris e dos pequenos lábios vaginais, ou a excisão mínima, utilizada também na Indonésia, onde se retira o capus do clitóris.[12]
Temos, ainda, a possibilidade de aplicação de pena de morte, tal como acontece na maioria dos estados norte-americanos, reconhecida pela Suprema Corte daquele país, que somente discute sobre os meios através dos quais essa pena poderá ser aplicada etc. Assim, são precisas as lições de Ingo Wolfgang Sarlet quando indaga:
            “até que ponto a dignidade não está acima das especificidades culturais, que, muitas vezes, justificam atos que, para a maior parte da humanidade são considerados atentatórios à dignidade da pessoa humana, mas que, em certos quadrantes, são tidos por legítimos, encontrando-se profundamente enraizados na prática social e jurídica de determinadas comunidades. Em verdade, ainda que se pudesse ter o conceito de dignidade como universal, isto é, comum a todas as pessoas em todos os lugares, não haveria como evitar uma disparidade e até mesmo conflituosidade sempre que se tivesse de avaliar se uma determinada conduta é, ou não, ofensiva à dignidade”.[13]
            Contudo, embora de difícil tradução, podemos nos esforçar para tentar construir um conceito de dignidade da pessoa, entendida essa como uma qualidade que integra a própria condição humana, sendo, em muitas situações, considerado, ainda, como irrenunciável e inalienável. É algo inerente ao ser humano, um valor que não pode ser suprimido, em virtude da sua própria natureza. Até o mais vil, o homem mais detestável, o criminoso mais frio e cruel é portador desse valor. Podemos adotar o conceito proposto por Ingo Wolfgang Sarlet, que procurou condensar alguns dos pensamentos mais utilizados para definição do conceito de dignidade da pessoa humana, dizendo ser:
            “a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.[14]

3.1. A concepção normativa da dignidade da pessoa humana
            Uma vez reconhecida a dignidade da pessoa como um valor inerente de todo ser humano, foi um passo importante a sua corporificação normativa.  Já o preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, dizia:
            Os representantes do povo francês, reunidos em Assembléia Nacional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em todos os membros do CORPO social, lhes lembre permanentemente seus direitos e seus deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser a qualquer momento comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundados em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral.
            O século XX, a seu turno, principalmente após as atrocidades cometidas pelo nazismo, presenciou o crescimento do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como sua formalização nos textos das constituições, principalmente as democráticas. Merecem ser registradas as considerações que levaram à proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, verbis:
            Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,
            Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultam em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum,
            Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão,
            Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,
            Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,
            Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades,
            Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,
            A Assembléia Geral proclama:
            A presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.
Dessa forma, podemos afirmar que, de todos os princípios fundamentais que foram sendo conquistados ao longo dos anos, sem dúvida alguma, se destaca, entre eles, o princípio da dignidade da pessoa humana. Trata-se, entretanto, como já dissemos anteriormente, de um dos princípios mais fluidos, mais amplos, mais abertos, que podem ser trabalhados não somente pelo Direito Penal, como também pelos outros ramos do ordenamento jurídico.
            O princípio da dignidade da pessoa humana serve como princípio reitor de muitos outros, tal como ocorre com o princípio da individualização da pena, da responsabilidade pessoal, da culpabilidade, da proporcionalidade etc, que nele buscam seu fundamento de validade.
            As Constituições modernas, a exemplo da brasileira, de 5 de outubro de 1988, adotam, expressamente, o princípio da dignidade da pessoa humana, conforme se verifica pela leitura do art. 1º, verbis:    
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento:
            I – a soberania;
            II – a cidadania;
            III – a dignidade da pessoa humana;
            IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
            V – o pluralismo político.
            Percebe-se, portanto, a preocupação do legislador constituinte em conceder um status normativo ao princípio da dignidade da pessoa humana, entendendo-o como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.
            Como princípio constitucional, a dignidade da pessoa humana deverá ser entendida como norma de hierarquia superior, destinada a orientar todo o sistema no que diz respeito à criação legislativa, bem como para aferir a validade das normas que lhe são inferiores. Assim, por exemplo, o legislador infraconstitucional estaria proibido de criar tipos penais incriminadores que atentassem contra a dignidade da pessoa humana, ficando proibida a cominação de penas cruéis, ou de natureza aflitiva, a exemplo dos açoites. Da mesma forma, estaria proibida a instituição da tortura, como meio de se obter a confissão de um indiciado/acusado (por maior que fosse a gravidade, em tese, da infração penal praticada).
            Assim, podemos afirmar com Lucrecio Rebollo Delgado que, temos que ter em conta que a dignidade humana constituiu não somente a garantia negativa de que a pessoa não será objeto de ofensas ou humilhações, senão que entraria também a afirmação positiva de pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo”,[15] devendo ser declarada a invalidade de qualquer dispositivo legal que contrarie esse valor básico, inerente a todo ser humano.
            Por outro lado, mesmo que a dignidade da pessoa humana não tivesse sido elevada ao status de princípio expresso, ninguém duvidaria da sua qualidade de princípio implícito, decorrente do próprio Estado Democrático de Direito, capaz, ainda assim, de aferir a validade das normas de nível inferior.

3.2. O desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana pelo próprio Estado

            Embora o princípio da dignidade da pessoa humana tenha sede constitucional, sendo, portanto, considerado como um princípio expresso, percebemos, em muitas situações, a sua violação pelo próprio Estado. Assim, aquele que seria o maior responsável pela sua observância, acaba se transformando em seu maior infrator.
            A Constituição Brasileira reconhece, por exemplo, o direito à SAÚDE, educação, moradia, lazer, alimentação, enfim, direitos mínimos, básicos e necessários para que o ser humano tenha uma condição de vida digna. No entanto, em maior ou menor grau, esses direitos são negligenciados pelo Estado. Veja-se, por exemplo, o que ocorre, via de regra, com o sistema penitenciário brasileiro. Indivíduos que foram condenados ao cumprimento de uma pena privativa de liberdade são afetados, diariamente, em sua dignidade, enfrentando problemas como os da superlotação carcerária, espancamentos, ausência de programas de reabilitação etc. A ressocialização do egresso é uma tarefa quase que impossível, pois que não existem programas governamentais para sua reinserção social, além do fato de a sociedade não perdoar aquele que já foi condenado por ter praticado uma infração penal.
            Com os avanços tecnológicos, outro problema está se colocando nos dias de hoje, que atinge diretamente a nossa dignidade, vale dizer, a violação da nossa intimidade. O Estado, como sempre, parece não andar com a velocidade necessária a fim de nos proteger dos ataques produzidos através dos novos meios tecnológicos, sendo, portanto, mais uma vez, negligente. E o que é pior, muitas vezes é o próprio Estado quem, através de seus meios repressores de investigação, viola o nosso direito à intimidade, a exemplo do que ocorre com a utilização de escutas telefônicas ilegais.
3.3 A relativização do princípio da dignidade da pessoa humana
            Segundo posição doutrinária amplamente majoritária, a dignidade da pessoa humana não possui caráter absoluto. Com isso, estamos queremos afirmar que, em determinadas situações, devemos, obrigatoriamente, trabalhar com outros princípios que servirão como ferramentas de interpretação, levando-se a efeito a chamada ponderação de bens ou interesses, que resultará na prevalência de um sobre o outro.
            Assim, tomemos como exemplo o fato de alguém ter praticado um delito de extorsão mediante seqüestro, qualificado pela morte da vítima. O seqüestrador, como é do conhecimento de todos, tem direito à liberdade. No entanto, em virtude da gravidade da infração penal por ele praticada, seu direito à liberdade, diretamente ligado à sua dignidade, deverá ceder frente ao direito de proteção dos bens jurídicos pertencentes às demais pessoas, que com ele se encontram NUMA mesma sociedade.
            Percebe-se, assim, que a dignidade, como um valor individual de cada ser humano, deverá ser avaliada e ponderada em cada caso concreto. Não devemos nos esquecer, contudo, daquilo que se denomina como sendo um núcleo essencial da dignidade da pessoa humana, que jamais poderá ser abalado. Assim, uma coisa é permitir que alguém, que praticou uma infração penal de natureza grave, se veja privado da sua liberdade pelo próprio Estado, encarregado de proteger, em última instância, os bens jurídicos; outra coisa é permitir que esse mesmo condenado a uma privação de liberdade cumpra sua pena em local degradante de sua personalidade; que seja torturado por agentes do governo com a finalidade de arrancar-lhe alguma confissão; que seus parentes sejam impedidos de visitar-lhe; que não tenha uma ocupação ressocializante no cárcere etc. A sua dignidade deverá ser preservada, pois que ao Estado foi permitido somente privar-lhe da liberdade, ficando resguardados, entretanto, os demais direitos que dizem respeito diretamente à sua dignidade como pessoa.
            A dignidade, por outro lado, poderá ser ponderada contra os próprios interesses daquele que a possui, e que pensa em dela dispor, em uma determinada situação, podendo o Estado agir, ainda que coativamente, a fim de preservá-la, mesmo contra a vontade expressa de seu titular. Merece ser registrado o famoso caso decidido pelo Conselho de Estado da França, que concluiu por correta a decisão do prefeito da comuna de Morsang-sur-Orge, que determinou a interdição de um estabelecimento comercial que promovia, contrariamente à dignidade da pessoa humana, o arremesso de anões. Naquela oportunidade, os clientes do mencionado estabelecimento podiam divertir-se arremessando, de um lugar para outro, os anões que ali trabalhavam. Nesse caso, foi desconsiderado o interesse dos próprios anões, que recebiam para serem “arremessados”.
            No entanto, não é tarefa das mais fáceis se concluir quando estaremos diante de uma ofensa à dignidade da pessoa humana, mesmo contra a vontade expressa daquele a quem se pretende defender, ou quando estaremos, em virtude dessa ponderação de interesses, diante de um direito legítimo da pessoa, mesmo que, segundo a opinião de terceiros, seja ofensivo à sua dignidade.
            Tomemos como exemplo o fato de um casal colocar cenas de sexo explícito disponíveis em um site da internet. Nesse caso, teriam eles direito à exposição da sua imagem, praticando o mais íntimo dos atos sexuais? E se tivessem filhos, a situação se modificaria? Estariam, em ambas os casos, exercendo o seu direito de liberdade à intimidade, ou esse direito poderia ser limitado? São perguntas que ensejaram respostas diferentes, variando de acordo com a pessoa, o tempo, a cultura, a sociedade etc. 
Dessa forma, obrigatoriamente, diante do caso concreto, termos que emitir um juízo de valor, procurando alcançar a solução que pareça mais justa, embora até o próprio conceito de justiça seja um conceito relativo, também merecedor de um outro juízo de valor.

4. Os direitos da personalidade como integrantes da dignidade da pessoa humana

            A personalidade pode ser apontada como decorrência direta do princípio da dignidade da pessoa humana, significando, resumidamente, a capacidade que tem todo ser humano de possuir direitos e de contrair obrigações, ou, ainda, conforme as precisas lições de  Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:
            “Conceituam-se os direitos da personalidade como aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e em suas projeções sociais.
            A idéia a nortear a disciplina dos direitos da personalidade é de uma esfera extrapatrimonial do indivíduo, em que o sujeito tem reconhecidamente tutelada pela ordem jurídica uma série indeterminada de valores não redutíveis pecuniariamente, como a vida, a integridade física, a intimidade, a honra, entre outros”.[16]
            Trata-se, segundo nosso posicionamento, de um direito inerente a todo ser humano. Nos países modernos, torna-se inconcebível afirmar que alguém não tenha personalidade. No entanto, nem sempre isso foi assim. Em um passado não muito distante, os escravos, por exemplo, eram similares às coisas. Podiam ser comprados, vendidos, trocados, açoitados, enfim, eram tidos como objeto de negociação e/ou uma ferramenta de trabalho. O mesmo aconteceu, em proporções menores, com as mulheres, que eram entendidas como uma classe intermediária entre os homens e os animais.
            Simón Carrejo, dissertando sobre o tema, esclarece que:
            “na linguagem jurídica atual, a expressão direitos da personalidade tem um particular significado, referente a alguns direitos cuja função se relaciona de modo mais direto com a pessoa humana, pois se dirigem a preservação de seus mais íntimos e imprescindíveis interesse. Com efeito, esses direitos constituem um mínimo para assegurar os valores fundamentais do sujeito de direito; sem eles, a personalidade ficaria incompleta e imperfeita, e o indivíduo submetido a incerteza quanto a seus bens jurídicos fundamentais”.[17]
Existem direitos, portanto, que nascem com todo ser humano, independentemente de sua origem, raça, sexo, cor, religião, a exemplo do que ocorre com o direito à vida, a liberdade sexual, à integridade física, à honra, à intimidade etc, e que dele não podem ser retirados. No entanto, como já afirmamos acima, e veremos um pouco mais detidamente adiante, não existem direitos absolutos, mesmo os considerados personalíssimos. Cite-se, como exemplo, o direito que todas as pessoas têm à liberdade. Contudo, se o agente vier a praticar um fato passível de uma condenação a uma pena privativa de liberdade, esse seu direito cederá no caso concreto. Assim, somente poderemos considerar como absolutos os direitos à personalidade no sentido de serem oponíveis erga omnes, e não no que diz respeito à sua intangibilidade.
            Embora tenhamos nos posicionado no sentido de que os direitos inerentes à personalidade sejam inatos, isto é, já nascem com todo ser humano e são antecedentes a qualquer disposição normativa, sendo, outrossim, considerados como direitos naturais, tal posição não é pacífica.
No sentido oposto à escola jusnaturalista dos direitos à personalidade encontra-se a posição entendida como positivista, que parte do pressuposto que somente haverá direito quando este for reconhecido formalmente pelo Estado, através de seus estatutos legais. É a lei, segundo essa corrente, a encarregada de reconhecer e proteger direitos que foram selecionados através de um critério político, que vai se modificando ao longo dos anos. Novas situações vão surgindo, novos conflitos irão acontecendo, fazendo com que o legislador desperte para a existência de novos direitos, que podem ser considerados como personalíssimos, fazendo parte, dessa forma, da personalidade do ser humano.
            Em que pese a força do raciocínio positivista, principalmente no que diz respeito ao reconhecimento de novos direitos da personalidade, que vão surgindo de acordo com a própria evolução da sociedade, existem determinados grupos de direitos que não se pode atribuir a sua existência ao formal reconhecimento da lei, a exemplo, como já o dissemos, do direito à vida, da integridade pessoal, da honra, da intimidade etc.
            Os direitos de personalidade possuem determinadas características que lhes são peculiares, que os distinguem dos demais. Além de serem considerados como absolutos, no sentido de serem oponíveis erga omnes, os direitos da personalidade gozam das características da: generalidade, extrapatrimonialidade, intransmissibilidade, irrenunciabilidade, imprescritibilidade, impenhorabilidade e vitaliciedade.
            Cleyson M. Mello e Thelma Fraga, dissertando sobre as mencionadas características, esclarecem:
“Generalidade, no sentido de que todos os seus titulares estão protegidos dos direitos da personalidade.
Extrapatrimonialidade, os direitos da personalidade não são aferidos objetivamente por um critério econômico.
Intransmissibilidade e irrenunciabilidade (…) para os direitos da personalidade, significa que estes não podem sofrer mutação subjetiva e não podem ser abdicados, recusados ou rejeitados pelo titular do direito, respectivamente.
Imprescritibilidade está ligada à inexistência de prazo para o seu efetivo exercício.
Impenhorabilidade, característica intrínseca à indisponibilidade, significa que o direito não pode ser abarcado por penhora.
            Vitaliciedade, ou seja, são inatos e permanentes à pessoa”.[18]
            Verifica-se, portanto, que de acordo com a sua natureza, bem como com as características que lhe são peculiares, os direitos de personalidade fazem parte do rol pertencente à dignidade da pessoa humana.
4.1. Irrenunciabilidade ou indisponibilidade dos direitos de personalidade
            De todas as características relativas aos direitos de personalidade, chama-nos a atenção, devido ao objeto do presente estudo, aquela que diz respeito à sua irrenunciabilidade ou indisponibilidade.
            Mesmo que à primeira vista sejamos forçados a concluir, por exemplo, pela irrenunciabilidade ou mesmo pela indisponibilidade do direito à vida, à integridade física, à honra, à intimidade etc, somente o caso concreto é que ditará essa regra, haja vista que não somente a lei, mas também os costumes, os valores sociais e morais existentes em uma determinada época é que serão determinantes ao reconhecimento dessa irrenunciabilidade ou indisponibilidade de determinado direito de personalidade.
            A vida, de acordo com a posição dominante, é indisponível, mesmo para o titular desse direito, razão pela qual os Códigos Penais, como regra geral, embora não prevejam qualquer punição, por questões de política criminal, para aquele que tentou praticar o suicídio, responsabilizam criminalmente o agente que induziu, instigou ou o auxiliou materialmente.
            O Código Penal brasieiro não responsabiliza criminalmente a conduta de tentar suicidar-se.  No entanto, entendendo o suicídio como um comportamento ilícito, permite que ocorra a intervenção de terceiros, mesmo contra a vontade do suicida, no sentido de impedir a sua morte, dizendo, no inciso II, do §3º, do seu art. 146, que não se configura em crime de constrangimento ilegal o fato de coagir alguém com a finalidade de impedir o suicídio.
            Por isso, tem-se entendido que embora tenhamos um direito à vida, não temos um direito à morte. Mesmo essa afirmação encontra opositores. Veja-se o exemplo constante do filme espanhol Mar Adentro, onde uma pessoa, tetraplégica, pleiteava na Justiça o seu direito em morrer.
            Não somente situações extremas, como a de se permitir o suicídio, seja ele auxiliado ou não, questionam a característica da irrenunciabilidade ou indisponibilidade do direitos de personalidade. Questões simples, como a disponibilidade sobre partes do próprio corpo, podem ser objeto de discussão, cujas conclusões serão fornecidas pela própria lei, ou pelos valores sociais em vigor. Assim, o fato de vender o seu próprio cabelo, para indústrias especializadas em perucas, encontra-se perfeitamente assimilado pela sociedade, não se podendo esquecer, aqui, que os cabelos fazem parte da integridade física das pessoas; ao contrário, vender um rim já se configuraria, tal como ocorre no Brasil, em uma infração penal.
            Como bem observado por Edson Ferreira da Silva:
            “a lei não veda e as sociedades não reprovam atividades perigosas, que submetem a vida e a integridade das pessoas a risco considerável, como o trabalho em fábricas de explosivos, de munição, de pólvora e outros produtos inflamáveis, em usinas nucleares, trabalho com material radioativo e outros; práticas desportivas, como o pugilismo, o automobilismo, as lutas marciais; os espetáculos circenses, que têm o perigo como principal atrativo, a exemplo do globo da morte, das acrobacias no trapézio e do arremesso de facas contra alvo humano; exibições de equilibrismo em grandes alturas e sem rede de proteção; e até a pioneira expedição do homem à lua e as viagens tripuladas que a sucederam.
            O Brasil ainda chora a morte do piloto Ayrton Senna, mas ninguém sequer cogita de proibir as corridas ou restringí-las por via legal, não obstante o imenso perigo de correr com um automóvel ou motocicleta a mais de trezentos quilômetros por hora.
            Portanto, não se pode conceber, senão sem termos bastante relativos, a apregoada indisponibilidade dos direitos da personalidade e de outros tantos, inclusive do direito à intimidade”.[19]
4.2. Direitos humanos e direitos de personalidade
            Existe controvérsia doutrinária quanto ao uso das expressões direitos humanos e direitos de personalidade. Para uma primeira corrente, entenderíamos como direitos humanos aqueles positivados no texto constitucional – ou mesmo em algum outro diploma infraconstitucional – que seriam oponíveis contra o próprio Estado. Seriam, assim, utilizados como escudo contra a prepotência e o autoritarismo do Estado. Dessa forma, se amoldariam na categoria de direitos públicos. Por outro lado, direitos de personalidade seriam aqueles regulados pelo direito civil, que dizem respeito às relações entre particulares.
            No entanto, como bem observado por Edson Ferreira da Silva:
            “sob o aspecto do direito público, os chamados direitos humanos não reclamam simples abstenção do Estado quanto a respeitar e não praticar arbitrariedades contra os direitos fundamentais do homem. Mais do que isso, deve o Estado assegurar a todos, pelos mecanismos específicos do Direito Constitucional e do Direito Penal, o livre gozo das liberdades fundamentais. Os órgãos do Estado destinados à contenção da delinqüência e da criminalidade, à apuração de responsabilidades no âmbito penal, desempenham o papel de proteger toda a coletividade em seus interesses fundamentais de segurança e tranqüilidade, dando a todos condições para o cumprimento da natural vocação ao progresso e ao desenvolvimento.
            A tutela pública é conferida em atenção ao corpo social como um todo e não a cada indivíduo em particular. Nisto reside a diferença entre tutela pública e tutela privada, entre direitos humanos e direitos privados de personalidade.
            Mas não é só. Quando ganham a Constituição, como acontece modernamente, os direitos fundamentais do homem constituem restrição ao poder legislativo do Estado, porquanto as leis infraconstitucionais não poderão restringir, suprimir ou se colocar em conflito com o texto maior, sob pena de invalidade”.[20]
           
5. Direito à intimidade como integrante da categoria dos direitos à personalidade

            Hoje em dia, não mais se discute que o direito à intimidade faz parte do elenco relativo aos chamados direitos de personalidade que, conseqüentemente, dizem respeito à dignidade da pessoa humana.
            No entanto, embora pertencente à categoria dos direitos personalíssimos e gozando, à primeira vista, de todas as características que lhe são inerentes, vale frisar, generalidade, extrapatrimonialidade, intransmissibilidade, irrenunciabilidade, imprescritibilidade, impenhorabilidade e vitaliciedade, conceituar, precisamente, a intimidade não é tarefa das mais fáceis.
            Isto porque, o conceito de intimidade varia de acordo com os costumes, o lugar, a criação, os valores correspondentes à sociedade na qual o sujeito está inserido, enfim, para se tentar apontar o direito à intimidade e, por outro lado, a sua violação, passível de punição em várias esferas, a exemplo da civil e da penal, todos os detalhes merecerão minuciosa análise.
            Veja-se, por exemplo, o que ocorre ainda em muitas tribos indígenas, existentes no Brasil, onde os membros que compõem o grupo têm o costume de andarem completamente nus, desde as crianças, até os mais idosos. A nudez, para eles, não é uma questão de intimidade, pois está disponível à visualização de todos. Quem quer que seja, membro ou não, que ingressar naquele grupo, presenciará a nudez de todos.
            Ao contrário, a nudez de uma famosa estrela do cinema, que resolve banhar-se em sua praia particular, longe dos olhos de todos, não está disponível, e qualquer tentativa, como acontece freqüentemente com os chamados paparazzi, de tentar desvendá-la, será uma violação ao direito de intimidade.
            Todos nós, portanto, trazemos conosco uma parte de nossa personalidade que não queremos que seja revelada, ou, quando revelada a poucas pessoas, não aceitamos a quebra da confiança depositada, e repudiamos a sua indevida divulgação.
            O direito à intimidade é como se fosse, figurativamente, um recinto, onde a porta somente pode ser aberta por dentro. Qualquer tentativa de ingresso importará em um arrombamento, uma violação indevida, merecedora de punição.
6. O direito fundamental à intimidade como decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana e seu fundamento constitucional
            Pelo que vimos até agora, podemos afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana, tendo ou não previsão constitucional expressa, servirá como fundamento de todo o sistema normativo. Além disso, tem-se entendido que o princípio da dignidade da pessoa humana é a fonte de onde emanariam os direitos fundamentais. Conforme esclarece Ingo Wolfgang Sarlet:
            “sendo correta a premissa de que os direitos fundamentais constituem – ainda que com intensidade variável – explicitações da dignidade da pessoa, por via de conseqüência e, ao menos em princípio, em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa”.[21]
            As Constituições mais modernas, a exemplo da Espanhola e Brasileira, não só prevêem expressamente o princípio da dignidade da pessoa humana, como vimos anteriormente, mas também direitos que lhe são decorrentes, como acontece com o direito à intimidade, conforme se verifica pela leitura do art. 18.1 da Constituição Espanhola, que estabelece que  se garantiza el derecho al honor, a la intimidad personal y familiar a la propria imagen, sendo complementado pelo item 4 do mesmo artigo que diz que la ley limitará el uso de la informática para garantizar el honor y la intimidad personal y familiar de los ciudadanos y el pleno ejercicio de sus derechos. [22]
            Perecebe-se, portanto, através da leitura do apartado primeiro do art. 18 da Constituição Espanhola, serem três os direitos fundamentais ali previstos, a saber: a honra, a intimidade e a própria imagem, espécies do gênero dignidade da pessoa humana.
            Conforme esclarece Lucrecio Rebollo Delgado:
            “ Durante el S. XIX no existe una concepción genérica del derecho al honor, sino más bien una adscripción de aquél referido a una determinada clase social. El honor era parejo con el prestigio personal y social. De esta forma, la aristocracia por ejemplo, incluía dentro de sus propiedades, la del honor, dwe la misma forma que las prostitutas estaban desposeídas de él. Además de ello, el honor tiene una implicación eminentemente privada. Sus disputas se resuelven en base al denominado ‘Código de Honor’.
            Al igual que en otros muchos derechos, el honor ha sufrido un proceso de democratización, de generalización social, de tal forma, que hoy toda persona tiene derecho al honor por el significativo hecho de serlo. Así, el derecho al honor se configura como la pretensión de respeto que corresponde a cada persona como consecuencia del reconocimiento de su dignidad”.[23]
            A honra, portanto, de acordo com a própria redação constitucional, difere do direito à intimidade. Podemos subdividir a honra sob dois enfoques diferentes. De um lado, a chamada honra objetiva, ou seja, o conceito que o sujeito goza junto a seus pares, quer dizer, junto à sociedade na qual se encontra inserido; por outro, a honra subjetiva, que é justamente o conceito que o sujeito atribui a si mesmo. Ambos devem ser preservados, razão pela qual, como regra, as leis penais cominam penas com a finalidade de proteger esse bem jurídico – honra -, considerado sob esse duplo aspecto.
O direito à intimidade, ao contrário, como bem colocado por Paulo José da Costa Júnior, “é o direito que dispõe o indivíduo de não ser arrastado para a ribalta contra a vontade. De subtrair-se à publicidade e de permanecer recolhido em sua intimidade. Direito ao recato, portanto, não é o direito de ser recatado, mas o direito de manter afastados dessa esfera de reserva olhos e ouvidos indiscretos, bem como o direito de impedir a divulgação de palavras, escritos e atos realizados nessa esfera de intimidade”.[24]
            Assim, de acordo com o que foi exposto, podemos afirmar que honra e intimidade são conceitos independentes. Dessa forma, poderá a honra de alguém ser atacada sem que, no entanto, seja atingida a sua intimidade, e vice-versa, a intimidade poderá ser violada, sem que a honra sofra qualquer ataque. Nada impede, entretanto, que a ofensa recaia, ainda, simultaneamente, sobre a honra e sobre a intimidade.  
A intimidade, portanto, é um direito fundamental assegurado constitucionalmente, devendo o Estado protegê-lo de todo e qualquer ataque.
            O direito à imagem, embora não seja pacífico esse entendimento, integra os chamados direitos à personalidade. Ter direito à própria imagem significa que esta somente poderá ser exposta com a sua permissão. Como esclarece Paulo José da Costa Júnior, pouco importa que “o modo pelo qual vem executado o retrato da pessoa. Fotografia, pintura, escultura. Ou máscara cênica, quando a imagem é reproduzida por meio de movimentos sucessivos no teatro, cinema ou televisão. Nessa hipótese, embora entre representado e espectador se interponha o ator, por ser ele o fiel intérprete de gestos e atitudes, reproduzindo expressões de vida, não raro, quando o desempenho é feliz, o público avizinha-se bastante da realidade”.[25]
7. Conceito e Teorias sobre o direito à intimidade
            Como já frisamos anteriormente, conceituar direito à intimidade não é tarefa das mais fáceis. É extremamente difícil, na verdade, não somente conceituar o que venha a ser direito à intimidade, como também traçar os seus exatos contornos, fazendo uma distinção entre o público e o privado.
            Edson Ferreira da Silva esclarece, com precisão, que:
            “Definir significa não apenas dizer o que uma coisa é, mas fazê-lo de forma plena e completa, sem deixar de abranger por inteiro o objeto definido e sem extravasar os seus limites. Desse modo, a definição há de se referir a um único e especial objeto, extremando-o de qualquer outro e afastando toda possibilidade de confusão.
            Uma boa definição da intimidade deve propiciar a sua diferenciação de realidades outras, que a doutrina por vezes confunde ou encontra dificuldades em distinguir, como a honra, a imagem, o nome, a reputação ou boa fama.
            Temos que reconhecer a extrema dificuldade de se formular uma boa definição para algo de conteúdo tão impreciso, mutável, inconstante e diversificado, porque subordinado aos costumes e aos valores sociais, que se diferenciam em cada época e lugar.
            Essa multiplicidade de conteúdo evidencia a necessidade da busca por um núcleo que possa servir de elemento comum e aglutinador de todas as várias facetas ou aspectos em que se desdobra o interesse de velar pela própria intimidade [...].
            A intimidade tem a ver com o sentimento das pessoas, a respeito das questões que elas não se incomodariam de participar aos outros e daquelas outras que preferem manter sob certa reserva.
            Esse sentimento, evidentemente, varia de pessoa para pessoa e é também diferenciado em cada cultura, em cada época e nos diferentes lugares. Está, ainda, em constante mutação no tempo e no espaço.
            Daí a dificuldade de se fixar o conceito, ainda que, restritivamente, para uma determinada época e lugar”.[26]
São três as principais teorias que disputam o tratamento do direito à intimidade. A primeira delas, denominada de teoria objetiva, adota a chamada teoria das esferas, do direito alemão, onde podemos visualizar, figurativamente, vários círculos concêntricos, sendo que no centro se encontra aquilo que existe de mais íntimo, reservado; ao redor, a intimidade familiar; e, por último, na sua face mais externa, a área destinada à esfera pública. É claro que essa definição não é absoluta, mas sim uma mera representação teórica.
A segunda teoria, reconhecida como subjetiva, como a própria denominação está a sugerir, entende que somente a pessoa, e mais ninguém, pode determinar o que é ou não íntimo, ou seja, somente ela cabe determinar os limites entre o particular e o público.
Modernamente, surgiu a chamada teoria do mosaico, como uma necessidade de proteção da intimidade do indivíduo “frente às ameaças que de forma genérica os novos engenhos tecnológicos e em concreto a informática supõem. Foi formulada por Madrid Conesa que entende que a ‘teoria das eferas não é válida, haja vista que hoje os conceitos de público e privado são relativos, pois existem dados que a priori são irrelevantes desde o ponto de vista do direito à intimidade, mas que unidos uns com os outros podem servir para configurar uma idéia praticamente completa de qualquer indivíduo, tal como ocorre com as pequenas pedras que formam um mosaico, que em si não dizem nada, mas quando unidas podem formar conjuntos plenos de significado”.[27]
Como se percebe, o próprio conceito de direito à intimidade não tem natureza absoluta, variando de pessoa para pessoa, de sociedade para sociedade, de cultura para cultura, de época etc. Assim, o que pode se constituir em uma violação ao direito à intimidade numa determinada sociedade, já não o será em outra.  Portanto, essa reserva íntima, aquilo que o ser humano quer preservar, que não deseja que seja do conhecimento dos demais, terá uma natureza relativa, não se podendo aplicar conceitos genéricos, predeterminados.
Com toda certeza, no entanto, podemos afirmar que cada indivíduo tem sua reserva especial. Em cada ser humano existe um cofre, onde os seus valores mais preciosos estão guardados, protegidos, indisponíveis para o conhecimento dos outros. Dessa forma, qualquer violação a esse cofre, onde ninguém, além do seu proprietário, possui a chave e o segredo para sua abertura poderá se configurar num atentado contra o direito de intimidade.
            Assim, embora seja complexa a sua definição, podemos entender como direito à intimidade aquela porção, inerente ao nosso direito de personalidade, que compete única e exclusivamente a nós, e que deve, de acordo com nossa vontade, ser subtraída do conhecimento público, ou, conforme as lições de Edson Ferreira da Silva, “o direito à intimidade deve compreender o poder jurídico de subtrair do conhecimento alheio e de impedir qualquer forma de divulgação de aspectos da nossa vida privada, que segundo um senso comum, detectável em cada época e lugar, interessa manter sob reserva”.[28]
8. Direito à intimidade e pessoas públicas
            Em algumas situações, a exemplo do que ocorre com as pessoas públicas, o direito à intimidade se vê limitado. A vida pública importa numa certa permissão para que o público em geral conheça mais detalhes sobre aquela pessoa que resolve se expor, através de suas atividades. No entanto, por mais que se reconheça uma limitação do direito à intimidade, essa limitação não importa, como se percebe, em sua total aniquilação. Nas precisas lições de Paulo José da Costa Júnior:
            “As pessoas notórias podem perder, pelo modo peculiar de vida ou profissão em virtude dos quais se tornaram personalidades de interesse público, numa certa medida, o direito à intimidade. Mas haverão de conservar preservada uma parcela da intimidade, à qual só terão acesso aqueles a quem for consentido nela penetrarem. Uma esfera de intimidade, mesmo reduzida, haverá de assegurar às personalidades notórias, onde possam eximir-se livremente, sem prestar contas a ninguém, abrigadas da curiosidade alheia. Embora seja precisamente esta esfera, que se quer subtrair à curiosidade popular, para deixá-la enclausurada nos muros do lar ou no sacrário da intimidade doméstica, aquela que mais acicata o público em geral. É como que uma vingança do homem medíocre – alguém já proclamou -, que deseja saber como vice e como se comporta na intimidade aquele que atingiu uma grandeza que ele não foi capaz de atingir”.[29]

9. Direito ao esquecimento
            Não somente a divulgação de fatos inéditos pode atingir o direito de intimidade das pessoas. Muitas vezes, mesmo os fatos já conhecidos publicamente, se reiteradamente divulgados, ou se voltarem a ser divulgados, relembrando acontecimentos passados, podem ferir o direito à intimidade. Fala-se, nesses casos, no chamado direito ao esquecimento.
10. Obrigação de indenização independentemente da ocorrência de dano à pessoa
            O dano causado já não é mais o fundamento da reparação por indevida violação ao direito de intimidade. A simples existência desse direito já importa na necessidade de sua proteção, e qualquer violação a ele, independentemente da prova da existência de um dano, importará no dever de indenizar. Conforme esclarece Lucrecio Rebollo Delgado,
“Agora persiste a indenização ou reparação do dano causado, mas não é o fundamento da proteção. Como conseqüência disso, a demonstração do dano causado já não é capital na atribuição da responsabilidade. Uma vez que agora o bem jurídico que se protege é a pessoa e seu livre desenvolvimento, a lesão consiste na violação desse âmbito”.[30]
            Quer isso significar, na verdade, que o prejuízo à intimidade é considerado presumido, sempre que houver uma indevida violação, cabendo, conseqüentemente, a reparação, conforme determina a primeira parte do art. 9.3 da Lei Orgânica Espanhola 1/82, que diz que la existencia de perjuicio se presumira siempre que se acredite la intromisión ilegítima.
11. Disponibilidade do direito à intimidade e consentimento do ofendido
            O direito a intimidade só pode ser reconhecido como absoluto no sentido de ser oponível erga omnes. Com isso, queremos afirmar que, somente o caso concreto dirá se haverá possibilidade ou não de sua disposição pelo titular desse direito.
            Dessa forma, em muitos casos, será possível que o sujeito disponha de sua intimidade, tornando-a pública, ou seja, do conhecimento de todos. Assim, aquela parte que todos nós entendíamos como reservada, a exemplo de nossa liberdade sexual, poderá estar disponível para que todas as pessoas tomem conhecimento. Veja-se o caso das “atrizes” que se dispõem a fazer filmes pornográficos. Sua intimidade fica completamente à mostra naquelas cenas. No entanto, nesses casos, tem-se entendido que se o titular do direito for pessoa maior e capaz, seu consentimento será válido no sentido de permitir que a sua intimidade seja devassada.
            Também não é incomum que alguém permita que um escritor narre a sua biografia, colocando à disposição do público tudo aquilo que considerava como mais reservado.
            Portanto, entendemos que, em se tratando de intimidade, esse direito poderá ser considerado como disponível desde que o seu titular seja pessoa maior (entendendo-se por maioridade aquela de natureza civil, a exemplo do que ocorre no Brasil com os maiores de 18 anos), bem como tenha capacidade para consentir (vale dizer, não seja portador de qualquer doença mental que o impeça de conhecer a natureza do comportamento por ele praticado etc).
            Qualquer vício de vontade tornará, ainda, inválido o consentimento.
            Outra característica que deve ser ressaltada é que o consentimento, por se tratar de direito personalíssimo, poderá ser revogado a qualquer tempo. Não importa que o sujeito tenha consentido inicialmente. Se houver arrependimento, tal consentimento poderá ser revogado. Assim, imagine-se a hipótese onde um escritor havia recebido autorização de uma determinada pessoa para publicar a sua biografia. Para tanto, passaram meses juntos, a fim de que o autor da obra pudesse conhecer todos os detalhes necessários à publicação do livro. Arrependido, e preocupado com a repercussão dos fatos, o sujeito que teria exposta sua biografia impede que o livro seja publicado. Nesse caso, o consentimento é válido no sentido de impedir, efetivamente, a publicação da obra. Contudo, isso não afasta a possibilidade do sujeito, titular do direito à intimidade, ter que indenizar a pessoa que perdeu meses trabalhando, com a finalidade de conseguir algum lucro com a vendagem do livro.
            Imagine-se, ainda, a hipótese onde uma atriz tenha assinado um contrato para a produção de um filme, onde teria, numa determinada cena, que manter relações sexuais com um outro ator. Arrependida, se recusa a realizar a cena. Nesse caso, não poderia o produtor do filme, por exemplo, ingressar na Justiça pleiteando a execução forçada do contrato, uma vez que não existe essa possibilidade em se tratando de direito à intimidade. Contudo, tal como no caso anteriormente exposto, isso não impediria que o mencionado produtor viesse a receber alguma indenização em virtude do descumprimento contratual.
            Portanto, concluindo, será possível o consentimento do titular do direito para que a sua intimidade seja exposta ao público, podendo, no entanto, arrepender-se a qualquer momento, não se podendo cogitar de qualquer execução forçada para o cumprimento do objeto do consentimento dado anteriormente, o que não impede de ser responsabilizado civilmente pelos prejuízos eventualmente causados.

12. Conclusões
            Os princípios, sejam eles expressos ou implícitos, positivados ou não, devem ser entendidos como informadores de todo o ordenamento jurídico, com a capacidade de aferir a validade das normas infraconstitucionais, ocupando, assim, uma posição hierárquica superior.
            Dentre os princípios considerados como fundamento do Estado democrático de direito podemos destacar o princípio da dignidade da pessoa humana, que constitui, de acordo com as lições de Lucrecio Rebollo Delgado, “no sólo la garantia negativa de que la persona no va a ser obejto de ofensas o humillaciones, sino que entraria también la afirmación positiva de pleno desarollo de la personalidad de cada individuo”.[31]
            O direito de personalidade é uma conseqüência natural da adoção do princípio da dignidade da pessoa humana, gozando das características da generalidade, extrapatrimonialidade, intransmissibilidade, irrenunciabilidade, imprescritibilidade, impenhorabilidade e vitaliciedade.
            Embora entendido como irrenunciável ou indisponível, essa característica não é absoluta, havendo possibilidade de exceções ditadas não somente pela lei, como também pelos costumes, pelos valores sociais e morais existentes um uma determinada época.
            Uma das facetas relativas ao direito de personalidade é, justamente, o direito à intimidade. Embora seja difícil delimitar o âmbito desse direito à intimidade, existe uma necessidade de se traçar limites entre o público e o privado. Ao longo dos anos, várias teorias surgiram com essa finalidade, podendo-se destacar as seguintes: a) teoria objetiva, também conhecida como teoria das esferas; b) teoria subjetiva; e c) teoria do mosaico.
            A ofensa ao direito à intimidade poderá gerar sanções tanto de natureza civil, como penal, independentemente, em muitas situações, de efetivo dano à pessoa que teve a sua intimidade violada.
            Embora entendida como um direito de personalidade, o direito à intimidade poderá ser considerado disponível, havendo necessidade, para tanto, do consentimento do titular desse direito.
BIBLIOGRAFIA
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1998.
CIOTOLA, Marcello. Princípios gerais de direito e princípios constitucionais – Os princípios da constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
COSTA JÚNIOR, Paulo José. Agressões à intimidade. São Paulo: Malheiros, 1997.
DAMÁSIO, Celuy Roberta Hundzinski. Luta contra a excisão. Revista Espaço Acadêmico, Ano I, n. 03, in www.espacoacademico.com.br
DANTAS, Ivo. Princípios constitucionais e interpretação constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995.
DELGADO, Lucrecio Rebollo. Derechos fundamentales y proteción de datos. Madrid: Dykinson, 2004.
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: RT, 2002.
GAGLIANO, Pablo Stolze; Pamplona Filho, Rodolfo. Novo curso de direito civil – parte geral. São Paulo: Saraiva, 2005, 6ª edição;
JIMENEZ, Cinta Castillo. Protección del derecho a la intimidad y uso de las nuevas tecnologias de la información, Huelva: Facultad de Derecho. Universidad de Huelva. Derecho y conocimiento, v. 1.
MARTÍNEZ, Olga Sánchez. Los principios enel derecho y la dogmática penal.
MELLO, Cleyson M; FRAGA, Thelma. Direito civil – Introdução e Parte Geral. Niterói: Editora Impetus, 2005;
OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Por uma teoria dos princípios. O princípio constitucional da razoabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
PEIXINHO, Manoel Messias. A interpretação da constituição e os princípios fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001;
SILVA, Edson Ferreira da. Direito à intimidade. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, 2ª edição.
[1] ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais, p. 53.
[2] Conforme artículos. 9.2  e  25. 1 da CE e art. 5º , XXXIX da Constituición Brasileña.
[3] Conforme esclarece Olga Sánchez Martínez, in Los principios enel derecho y la dogmática penal, p. 46, “os princípios gerais do direito permitem, sendo fiel a lei, construir valorativamente sua aplicação. No momento da interpretação jurídica as norma são reconduzidas aos princípios buscando sua conformidade com o conjunto de valores materiais reconhecidos no ordenamento jurídico, seja texto constitucional ou na regulamentação concreta das distintas instituições jurídicas”.
[4] DANTAS, Ivo. Princípios constitucionais e interpretação constitucional, p. 59.
[5] OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Por uma teoria dos princípios. O princípio constitucional da razoabilidade, p. 19.
[6] GUASTINI, Ricardo apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais, p. 61-62.
[7] BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais, p. 47-51.
[8] CIOTOLA, Marcello. Princípios gerais de direito e princípios constitucionais – Os princípios da constituição de 1988, p. 46.
[9] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 232.
[10] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 234.
[11] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 237.
[12] Conforme adverte Celuy Roberta Hundzinski Damasio, in Luta contra a excisão, publicada na Revista Espaço Acadêmico, Ano I, n. 03, “no leste africano (Djibuti, Etiópia, Somália, Sudão, Egito, Quênia), a infibulação, também chamada de excisão faraônica, considerada a pior de todas, pois, após a amputação do clitóris e dos pequenos lábios, os grandes lábios são secionados, aproximados e suturados com espinhos de acácia, sendo deixada uma minúscula abertura necessária ao escoamento da urina e da menstruação. Esse orifício é mantido aberto por um filete de madeira, que é, em geral, um palito de fósforo. As pernas devem ficar amarradas durante várias semanas até a total cicatrização. Assim, a vulva desaparece, sendo substituída por uma dura cicatriz. Por ocasião do casamento a mulher será ‘aberta’ pelo marido ou por uma ‘matrona’(mulheres mais experientes designadas para isso). Mais tarde, quando se tem o primeiro filho, essa abertura é aumentada. Algumas vezes, após cada parto, a mulher é novamente infibulada”.
[13] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 55-56.
[14] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 60.
[15] DELGADO, Lucrecio Rebollo. Derechos fundamentales y proteción de datos, p. 18.
[16] GAGLIANO, Pablo Stolze; Pamplona Filho, Rodolfo. Novo curso de direito civil – parte geral, p. 150.
[17] Apud Edson Ferreira da Silva, in Direito à intimidade, p. 8.
[18] MELLO, Cleyson M; FRAGA, Thelma. Direito civil – Introdução e Parte Geral, p. 105
[19] SILVA, Edson Ferreira da. Direito à intimidade, p. 32.
[20] SILVA, Edson Ferreira da. Direito à intimidade, p. 21-22.
[21] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 87.
[22] Dispositivo similar encontra-se na Constituição Brasileira, que diz: 5. X,  “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
[23] DELGADO, Lucrecio Rebollo. Derechos fundamentales y proteción de datos, p. 26-27.
[24] COSTA JÚNIOR, Paulo José. Agressões à intimidade, p. 33.
[25] COSTA JÚNIOR, Paulo José. Agressões à intimidadade, p. 43.
[26] SILVA, Edson Ferreira da. Direito à intimidade, p. 49-50.
[27] DELGADO, Lucrecio Rebollo. Derechos fundamentales y proteción de datos, p. 38-39.
[28] SILVA, Edson Ferreira da. Direito à intimidade, p. 51.
[29] COSTA JÚNIOR, Paulo José. Agressões à intimidadade, p. 28.
[30] DELGADO, Lucrecio Rebollo. Derechos fundamentales y proteción de datos, p. 48-49.
[31] DELGADO, Lucrecio Rebollo. Derechos fundamentales y proteción de datos, p. 18.

FONTE: http://www.rogeriogreco.com.br/?p=1072 Visitado em 09/04/2015 16:30